Análise de documentário – Edifício Master, Eduardo Coutinho, 2002

A definição do que seja documentário é uma das mais controversas dos Estudos de Cinema. Antes de mais nada, é preciso abandonar as falsas concepções de “compromisso com a verdade”, “realidade” e “objetividade”. Essas teses caem por terra ao conceber que o documentário trabalha com módulos de encenação. Segundo Fernão Ramos: “Documentário é uma narrativa com imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essas asserções.” Para entender a narrativa documental, é necessário entender a presença da “voz” que faz essas asserções. Usando a abordagem teórica de Bill Nichols, há quatro tipos de vozes mais comuns na narrativa documental: a “voz de Deus” (narração fora de campo, usada na gênese do documentário); a “voz do cinema direto” (estrutura dramática à ficcional, aproveita-se das inovações técnicas como a portabilidade da câmera, que captou o som direto); “voz do documentário entrevista” (comum a partir dos anos 70, narrador falando diretamente ao espectador) e “voz auto-reflexiva (mistura passagens observacionais com entrevistas, vozes sobrepostas do diretor, intertítulos, revelando o documentário como uma forma de representação do real e não uma janela para o real. Podemos dizer que Eduardo Coutinho se insere nessa última vertente.

O cinema de Eduardo Coutinho é marcado pela “encenação do eu”, onde, ficcionalizando a verdade, busca resgatar o imaginário dos personagens. Vinculado ao movimento do Cinema Novo, o diretor tem em sua filmografia o predomínio da temática dos ambientes de favela, sertão – relação com o movimento do cinema brasileiro, a estética da Fome (representado por Glauber Rocha, “nossa originalidade é nossa fome.”). Com Edifício Master, assinala-se uma ruptura nesse padrão, ao inserir o contexto de classe média, Coutinho mergulha no imaginário dos personagens, onde seus discursos vão dar o tom do filme. O filme, em linhas gerais, conta pequenas histórias de moradores de um grande “pombal”, um edifício com muitos apartamentos, no Rio de Janeiro.

Edifício Master não é um filme sobre a classe média, apenas ambientado nela. É um filme que costura histórias do imaginário de pessoas, o foco do filme, focado na memória. Segundo Coutinho, toda memória carrega um componente de imaginário. No encontro do diretor com o personagem, elas ficcionalizam suas próprias vidas. Em seu livro “Afinal, o que é mesmo o documentário”, Fernão Ramos exemplifica esse sujeito câmera como “exibicionista”: “A exibição é um estado de ânimo do tipo narcisista, que ‘lançar-se pelo’ da tomada, retorna sobre si e se maravilha (…) Coutinho costuma compor um sujeito-da-câmera quieto, que não é propriamente exibicionista em sua presença, mas que provoca a encenação afecção.” Ou seja, aqui fica tênue o limite entre a ficcionalização e o real: o documentário também trabalha com módulos de encenação e também é uma representação do real. Coutinho enfatiza isso o tempo todo, mostrando a equipe de filmagem e muitas vezes sugerindo sua presença dentro de quadro.

O edifício que dá nome ao filme está localizado em Copacabana, bairro na cidade do Rio de Janeiro lembrado pela aglomeração de pessoas e de conjuntos habitacionais. Com 12 andares e 23 apartamentos pequenos por andar, o Edifício Master proporcionou uma ruptura com obras anteriores do diretor, com as filmagens sendo realizadas em uma só locação. Coutinho procurou no edifício personagens com características próximas às encontradas em seu cinema: homens e mulheres com expressão narrativa para segurar o interesse do espectador sem deixar o documentário monótono. É um filme que costura histórias do imaginário de pessoas. Segundo relato da pesquisadora Consuelo Lins em seu livro sobre a obra de Eduardo Coutinho, a busca dos homens por reconhecimento na sociedade encontra na mídia um poderoso instrumento. A oportunidade de “aparecer” em um filme, em um período histórico dominado pela estética dos reality-shows da televisão, pode ser uma maneira de conseguir legitimação para sua existência.

Uma característica interessante mostrada em Edifício Master é a diferença de prioridades da classe média em relação às classes mais humildes. Superados os problemas referentes a questões básicas da vida, surge uma outra perspectiva com novas dificuldades e métodos de superação. Esse é um dos méritos do documentário: mostrar os conflitos dos personagens, por mais irrelevantes que em um primeiro momento possam parecer, sem trazer juízo de valor.

Os apartamentos simbolizam o refúgio da realidade de cada personagem e os contrastes são trabalhados no filme, em contraponto com a vida urbana e o caos da cidade, mas sem nenhuma tomada da mesma. A cidade é referenciada sempre, mas não está visível. A individualidade de cada um pode ser representada no pouco laço de união entre os personagens – a maioria não se conhece e quando raramente se referenciam, é com crítica. Cada morador em Edifício Master apresenta problemas e histórias de vida sem paralelos entre seus semelhantes, ao contrário do ambiente da favela, onde o senso de comunidade é muito mais evidente.

Sem a presença de um narrador tradicional como no cinema clássico, Coutinho transforma Edifício Master em um retalho de relatos, mas que de maneira nenhuma se transformam em conversas enfadonhas e sem significado. A montagem do filme evidencia o destaque dado aos personagens. O diretor não utiliza trilha e nem imagens externas para ilustrar as conversas. Mesmo nas passagens de uma entrevista a outra são usadas tomadas internas do prédio, mostrando os corredores, elevador e portaria do edifício. A aparição tanto da equipe de filmagem quanto do diretor, características na obra de Coutinho, também são utilizadas no documentário, deixando explícito ao espectador os métodos de produção, reforçando que se trata de uma representação do real.

 

Bibliografia consultada:

 

LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2004.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Papirus, 2005.

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal, o que é mesmo o documentário? Editora Senac, 2008.

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